MANIFESTO PRIMEIRO
O nosso rosto, a nossa identidade, as nossas referências (e anti-referências), os nossos objectivos, os nossos sonhos gravam-se neste Manifesto. Não são absolutos, nem terminados, porque voltaremos sempre a eles, ciclicamente, para reflectirmos e nos ajustarmos às diversas realidades que o futuro nos reserva. Queremos então que o nosso trabalho e este documento sejam cúmplices. Sempre.
Da arte
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Relativamente à representação, gesto e palavra têm o mesmo valor. Dito de outra forma: comunicação não verbal e comunicação verbal encontram-se, à partida, no mesmo plano. Ou, se preferirmos, o texto de um espectáculo é tudo o que objectivamente se puder percepcionar a partir do público: luz, som, música, ritmo, movimento, gesto, postura, palavra, figurino, cenário, espaço cénico, etc.
Pensamos assim porque também queremos que o teatro não seja somente a transposição cénica de uma mensagem literária. Não queremos que todos os restantes elementos que podem constituir um espectáculo sejam relegados pelas palavras para segundo plano, por encobrimento ou por deslumbre.
A linguagem falada foi anteriormente a melhor forma de registo, quando inscrita em papel, pelo menos desde o advento da imprensa. Culturalmente, o teatro ainda é hoje, em larga escala, sobretudo no Ocidente, pensado a partir das falas das personagens. Não as recusamos, não as desvalorizamos, mas elevamos os restantes componentes da comunicação e da significação ao mesmo nível. A palavra não é o único ponto de partida para a criação física num espaço-tempo. Definitivamente, não pensamos o teatro como tratando-se de um ramo da literatura.
A única linguagem pura (ou específica) do teatro é a linguagem da encenação. Falamos de uma poética do espaço, de uma plasticidade de corpos-em-vida que está mais no domínio das acções físicas que do psíquico ou do psicológico.
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Acreditamos que quem não conseguir dizer algo com o corpo, com o gesto, a expressão, a postura, dificilmente o saberá comunicar com palavras. Queremos imitar a vida criando convenções, não queremos imitar convenções, tomando-as como sendo a vida. Por tudo isso, o que nos importa é emocionar. O nosso objectivo último, é emocionar o público, ou seja: sentir para ajudar a sentir. É para isto que criaremos um pacto com o público: para que a vida possa ser comunicada de forma a ser entendida por todos. É neste encontro, nesta partilha, que consiste, aliás, a especificidade do teatro.
O que nos faz mover é o que se passa naquele espaço que intervala os espectadores dos actores (por mais reduzido e/ou desorganizado que seja), muito mais do que o que se passa no público ou o que se passa na área de representação. Falamos, portanto, do contacto da energia comunicada entre quem faz e quem vê.
Cada espectáculo deve, assim, ser um pretexto precioso para podermos fazer teatro com o público e não para o público. Por isso mesmo, não procuramos criar obras mas, sim, encontros. Por isso mesmo, debruçamo-nos acima de tudo com o "como fazer", mais do que com o "que fazer". É que se o objecto a trabalhar é importante para exprimir uma identidade e uma vontade de comunicação próprias, muito mais relevante será a forma como iremos trabalhá-lo na relação com o público, pois é da concretização e da realização directa dessa identidade e dessa vontade que dependemos enquanto seres que criam arte.
Também acreditamos que não há nada que possa ser mais aborrecido do que uma peça de teatro aborrecida.
Da ética
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Não nos instalaremos. Nem pela conquista, nem pelo medo, nem pela preguiça. O que realmente nos importa é aquilo que estamos dispostos a fazer para atingirmos um objectivo, mais do que a conquista desse mesmo objectivo. As propostas de trabalho no plano artístico não podem, então, recear o risco. Rejeitamos desde já os denominados "riscos calculados". Tal como a vida, o teatro é uma arte tão precária quanto preciosa.
A pesquisa, a experimentação, o inconformismo, a inquietação, o amor são os nossos instrumentos por excelência e são anteriores aos métodos e aos sistemas. O cinema e o home cinema (filme analógico e digital), a televisão, o computador e o que dele deriva (principalmente os videojogos e a Internet) não podem ser considerados nem adversários nem concorrentes do teatro. Pelo contrário, são a grande oportunidade do teatro se reencontrar e definir a sua especificidade: o encontro, a partilha de uma comunidade que se conhece, numa observação ao vivo dos seus próprios actos.
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Por definição, os trabalhos, as criações, os projectos nunca se encontram fechados e acabados. Até ao último espectáculo e até ao último espectador não enjeitaremos a oportunidade de evoluir. Queremos ser a expressão de uma comunidade, podendo ao mesmo tempo manifestarmo-nos verdadeiramente como "um teatro do mundo". O nosso propósito aborda o teatro como sendo uma arte e uma ciência da vida. Procurar e desenvolver uma metodologia estará por detrás de qualquer propósito, porque queremos saber como se consegue um resultado, porque queremos repeti-lo sempre que o desejarmos, para que evolua. Procuramos o rigor e a autenticidade das propostas apresentadas, dentro do espírito e da força do colectivo, questionando ao mesmo tempo valores culturais ditados pelo culto da personalidade que ainda tanto caracteriza o teatro no Ocidente, como "originalidade", "génio", "inspiração", "talento" ou até mesmo "instinto", tantas e tantas vezes consagrados para escamotear a falta de trabalho, o medo ou a ignorância.
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Não procuraremos o "bom" ou o "bem feito". Inseridos numa sociedade culturalmente tão desequilibrada e com tão poucos hábitos de reflexão e crítica, facilmente se atingirá essa fasquia. Procuraremos, sim, a perfeição, porque sabemos que essa é inatingível e preferimos não lhe ver o fim do que terminar uma estrada que não tem assunto. A nossa ignorância não é especializada. Por isso é que somos A ESTE.
ESTE Agosto de 2004
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